Lamas (O vinho)
Perguntando a um entendido como havia de encontrar documentação sobre as antiguidades de Lamas, informou-me que devia começar por consultar o livro das visitas do Arcediago de Penela. Assim fiz e comecei por ler o relato das visitas de 1752. Nesses tempos em que a Inquisição ainda vigorava, fazia parte da visita a «devassa». A «devassa» era uma espécie de tribunal constituído pelo Arcediago e seus secretários. Os fiéis deviam acusar os casos escandalosos que houvesse na freguesia. Em Vila Seca e Bendafé apenas foram acusados dois bêbados incorrigíveis, um em cada freguesia. Foram repreendidos e exortados a emendar-se. Em Lamas, embora houvesse três acusações, não apareceu nenhuma sobre o abuso de bebidas alcoólicas. Era Tudo uma santidade! A Bíblia corta que foi Noé o primeiro a provar e a enganar-se com o vinho. O Evangelho fala em vinhas plantadas na Palestina, muradas e com lagar anexo. Naturalmente chamavam lagar ao que damos o (nome de adega. Está a lembrar-me um passeio que dei, há uns 45 anos, bem longe daqui, com um velho paroquiano. Só havia latadas ou parreiras e videiras atiradas para cima de sobreiros, oliveiras e outras árvores. Dizia que noutros tempos havia muito mais videiras. Olhe! Aqui era uma adega, aqui outra... Lembro-me bem. Hoje não há videiras como quando eu era novo. É curioso que os nossos antigos não falavam em poda e empa. Na Palestina, porém, já se podavam as videiras no tempo de Cristo. Lembre-se a passagem do Evangelho de São João em que. o Senhor diz que é uma videira e os discípulos as varas. «Toda a vara — diz — que não dá fruto em mim, Ele (o Pai), corta-a e limpa toda aquela que dá fruto para que dê mais fruto» (João, XII, 2). Contudo havia muito vinho e de qualidade excelente. Que pena tenho daquela videira grande que fazia uma curva em certa altura onde nos sentávamos como numa cadeira de encosto! Estava estendida sobre uma ameixieira e produzia uns cachos grandes e brancos como os diagais, doces como o mel! Só na Terra Santa, em 1975, comi uvas assim tão saborosas. A única coisa em que o lagar de vinho se parecia com o lagar de azeite, era a vara ou trave com que se apertava a pilha de engaço para tirar o resto do vinho. Nunca vi nenhuma dessas varas mas lembro-me muito bem do dispositivo, em paredes antigas, onde trabalhava a parte fixa da trave. Na loja da casa onde morreu o sr. Joaquim Bento Sequeira, em Urzelhe, no sitio onde o dono actual tem um depósito de cimento para guardar as uvas que passaram pelo esmagador, havia um estrado, bastante grande, construído em cantaria, com umas ranhuras eu regois, aos lados por onde corria o vinho para uma saída donde caía para baldes ou barricas a fim de ser despejado nas pipas ou tonéis. Não conheci o fuso que levantava o peso., como nos lagares de azeite, mas esta pedra enorme, com os seus 500 quilos, esteve muitos anos encostada à varanda actual. Não foi só a técnica moderna que acabou com os lagares. Foi principalmente uma moléstia a que chamaram filoxera que deu cabo das videiras antigas. Houve uma família nobre em Traveira. Duma senhora dessa família, ainda muitos nos lembramos, por ter casado com o Dr. Joaquim Peres de Penela. Outra (irmã ou tia?) casou com um senhor de Cantanhede, conhecido peio nome de Canelas. Foi este senhor quem mandou plantar e enxertar, a primeira, vinha, nos nossos sítios, após a filoxera. 0 meu Professor de Instrução Primária, Joaquim Gemes do Rosário, lembrava muitas vezes que essa vinha era um monumento. Lembram-se da Ponte de Pau (tem este nome) que fica próximo da confluência das ribeiras de Bruscos e Traveira? Pois é a enorme vinha que fica ali perto, a do Canelas ou do Roseiro, que serviu de modelo às nossas vinhas «modernas. Começou então o terreno calcário da nossa região a cobrir-se de vinhas mas muito lentamente. É que parecia haver mais pedras que terra e era preciso separar umas da outra. Antes de plantarem os bacelos bravos, bem alinhados, abriam grandes trincheiras, isto é, amanteavam o terreno. Quando os (trabalhadores estavam no fundo da manta, só se lhes via a cabeça. Era um trabalho muito violento e, por isso, as jornas tinham de ser mais elevadas. Onde armazenar tanta pedra? Não terá sido a abundância dela que fez aparecer em Lamas inúmeros fornos de cal e até um ou outro lavrante como o sr. Manuel Ferreira Sabina? A produção de vinho chegou a ser importante. Basta lembrar os tonéis gigantes da adega do sr. Dr. Francisco Rosa Falcão e o que sucedeu ao sr. José Alves Esteves que, num amo, precisou de utilizar o grande depósito das águas pluviais para (recolher a superprodução daquele ano. Com o aparecimento dessas máquinas modernas, mais poderosas que a alavanca de Arquimedes, é que da Copeira a Podentes e do pinhal da Abufarda (Condeixa-a-Velha) às proximidades de Ansião, se não vêem senão vinhas. Os grandes balseiros foram substituídos por espaçosos depósitos de cimento armado. As dornas, tão interessantes, em forma oval para caberem nos carros de bois sem tocarem nas rodas, deram lugar a esses depósitos enormes de ferro, puxados por tractores. As pipas e tonéis já «pouco se vêem e apareceram, a substituí-los, essas teorias de depósitos em cimento que lembram uma pilha de baterias monstruosas. Em compensação já se não fala em sarro que só se produzia nas vasilhas de madeira. Antigamente as uvas eram pisadas com os pés, agora há os esmagadores, movidos à mão ou principalmente .pela electricidade. E o vinho? Já ouvi dizer que o vinho da nossa zona é dos melhores do mundo. Mais de uma vez calhou ouvir este desabafo: «Apre! Este é macho!» Consta que a Cooperativa de Souselas aprecia muito as nossas uvas. Encontra nelas umas propriedades especiais que vão enriquecer o vinho da sua marca. Modernamente vendem-se muitas uvas a peso. O Danil que tinha uma grande adega, usava a dizer-me: O vinho que vendo melhor, é quando vendo as uvas. Outro produto das videiras é a aguardente. Vende-se pelo preço do azeite. Mas a que se fabricava nos alambiques, era muito mais saborosa. Para produzir mais aguardente, não espremiam os engaços como antigamente nos lagares e hoje com as prensas. Modernamente quase todos se desfizeram dos alambiques. Em seu lugar, vieram as destiladeiras. Há uma em Urzelhe, outra em Lamas e uma terceira na estrada de Pousafoles, montada por um senhor de Lorvão. O engaço é espremido até ficar seco como palha. O trabalho faz-se mais depressa, mas, como os produtores são muitos, durante três semanas, não há domingo nem dia santo, nem noite nem dia. Há finalmente a jerropiga. É uma mistura de mosto com aguardente. Em cada três litros de mosto misturam um de aguardente. Esta não deixa o mosto ferver, de modo que, depois de clarificar, fica uma delícia. Todos os vinicultores fabricam uma pequena quantidade. Dizem que é bebida de mulheres. “Mirante”, Ano 9º, nº 105, 1 dez.1986, f. 1, 3 |