Lamas

(O Índia)

 Mais uma vez saímos da ordem lógica para ver se não nos tornamos aborrecido.

Marcelo António Fernandes— o Índia—é um dos Filhos ilustres de Lamas.

Nasceu no lugar de Pousafoles em 4 de Abril de 1776, falecendo em Lisboa, numa casa da antiga Praça de São Paulo, em 28 de Dezembro de 1854, no estado de solteiro. Foram seus pais José Fernandes e Maria da Piedade, seus avós paternos João Fernandes e Maria da Paz e maternos Domingos Dias e Francisca Rodrigues, do lugar do Pisão das Cerejeiras.

Não sei a razão porque o alcunharam de “o Índia”. A lenda, com efeito, diz que terá fugido da Índia com uma fortuna tal que teve de fretar um navio para trazer os seus bens.

O seu testamento cuja cópia o sr. Jerónimo Ramos Falcão, de Urzelhe fez favor de me facultar, não faz qualquer alusão à Índia. É certo que na altura em que procuravam arranjar o dinheiro preciso para pagar o tributo que Napoleão Bonaparte exigiu a Portugal, em 1808, na finta feita em Pousafoles, B. Pimenta cita o feitor de Marcelo A. Fernandes. É prova de que já nesse tempo era proprietário notável.

Só em 1830 regressou à Pátria, após a sua demorada estadia no Pará (Brasil).

A única coisa que nos faz pensar na Índia é a bolsa de pura seda que servia para ele guardar a opa de irmão da Confraria do Santíssimo. Guarda-a o sr. Aníbal Gon­çalves que, como todos sabem, foi casado com Maria da Piedade Falcão. Ora, estes Falcões também foram herdeiros do nosso Ìndia. Mas isso nada prova.

É impossível transcrever aqui todo o seu testamento por ser muito extenso.

Tem certa graça referir-se várias vezes a Lamas como pertencendo ao concelho da Lousã. Certamente queria dizer “comarca” e não “concelho”.

Não consta que, em qualquer época pertencesse àquele concelho.

Quanto aos bens de alma, não só determina as missas que hão-de celebrar por sua alma e estipêndio desusadamente generoso (480 réis) mas é interessante lembrar o seu “Thio Padre Vicente de Santa Maria”. Jamais ouvira falar deste sacerdote. As dez missas pelas almas mais necessitadas “com especialidade dos meus inimigos” creio que são uma prova do seu arrependimento.

Repare-se também nesta cláusula: “Deixo aos Logares Santos de Jerusalém, em atenção a alguma diferença que possa ter havido nas contas como síndico que fui na cidade do Pará, a quantia de cem mil réis”. Penso que é um sinal que demonstra a confiança que ele merecia às autoridades religiosas do Pará.

Da passagem que se segue, julgo poder deduzir-se o grande volume dos negócios em que entrou e também que saiu do Pará para este Reino, como se exprime, a fugir. Senão vejamos:

“Declaro que tive grandes transacções, como negócios de interesse com António José Meirelles de Maranhão, começando em 1813 até Agosto de 1830 e suposto que as revoluções do Pará motivaram o extravio dos livros de escrituração, tenho em meu poder cadernos e resumo de contas. Em presença destes, dos dados para julgar do activo e passivo, não me resta a menor dúvida de que sou credor à dita casa. Logo que apareça lançado o meu crédito, adição de dez contos oitocentos e cinco mil oitocentos e quarenta e nove réis, resultante da venda de escravos da conta do mesmo, cujas obrigações entreguei, de sua ordem, a António da Silva Neves, a cargo de quem ficou a recepção, quanto também se me abone um terço do valor segurado da escuna Bella Eliza que foi apreendida na Costa da Mina, assim como interesses por fretes desta, em diversas viagens, acrescendo a minha parte de um terço de lucros em algumas remessas de escravos”.

Será bom notar que se transcrevem estes períodos do documento de que se vem tratando, dum modo bastante confuso; mas convém ser assim para afastar o perigo de atraiçoar o pensamento do testador.

Lembro que a independência do Brasil foi proclamada em 7 de Setembro de 1822, portanto, no tempo em que o Índia desenvolvia a sua actividade de grande negociante.

Convém recordar que a escravatura só foi definitivamente abolida em Portugal no tempo de D. Luís, em 29-IV-1875, e no Brasil, em 13-V-1888, pela princesa Isabel, pelo que os seus negócios, embora desumanos, não eram contra a lei.

Ao procurar o registo do Baptismo do Índia, encontrei vários com o nome de Marcelo. Mas, quando achei o que tinha o pai com o nome de José Fernandes e os avós maternos do Pisão das Cerejeiras, é que me convenci de que se tratava do nosso Marcelo António Fernandes.

Na verdade, lá vem no testamento: “Deixo ao meu irmão Vicente Fernandes da Paz quanto me pertence por legítima paterna e materna, excepto o pouco que possuo no Pisão das Cerejeiras que deixo à minha criada Guiomar, etc”.

Aqui ficam estes apontamentos sobre a lendária figura do “Índia” do qual, em Pousafoles, ainda se encontram algumas reminiscências.

“Mirante”, Ano 7, nº 79, out. 1984, f, 1 e 2