Lamas (A Igreja)
Quando comecei a interessar-me pela História de Lamas, aconselharam-me a consultar primeiro o Livro das Visitas de Arcediago de Penela em 1752. Assim fiz e deparei com esta notícia: “Foi visitada a igreja do Espírito Santo da freguesia de Lamas... Procedeu-se à devassa dos paroquianos para extirpar os escândalos, que houvesse. Apareceram várias denúncias, sendo as principais contra: a) Anna Bicha, etc., etc, b) Marcelo António Lobato de Fervenças e João Domingues. Andão com ódio, não entrando em casa um do outro”. Sobre o Espírito Santo, titular da paróquia de Lamas, escreverei outro dia. Agora só quero chamar a atenção para este João Domingues. Deve ser o pai deSebastião Domingues de que vai falar, a seguir, B. Pimenta. Mas demos-lhe a palavra. No Diário de Coimbra de 23 de Março de 1951, vêm publicadas as seguintes notas que pedimos vénia para transcrever aqui: A actual igreja paroquial de Lamas é de construção, relativamente recente. A anterior que, certamente, já não seria a primitiva, era nos começos do século 18.° pequena para a população da freguesia — então curato anexo á matriz de Miranda. Em 1733 o visitador, dr, Pascoal Mendes Barreto, de combinação com o juiz da igreja e mesas das confrarias, deixou um capítulo relativo á necessidade de alargamento do templo e de novo retábulo da capela-mor, além doutros melhoramentos. Com este fundamento, subiu ao Bispado um requerimento para que aquelas entidades pudessem proceder — ao que o promotor se não opôs bem como o vigário-geral que mandou passar licença. Levantaram-se, porém, dificuldades e durante os 50 anos seguintes as coisas ficaram no mesmo pé. Em 1784, novamente o visitador, o vigário da colegiada de Abiul, dr. José Caetano Rebelo Tavares e Mesquita que na freguesia esteve a 12 de Fevereiro, impôs a obrigação da reforma e aumento da igreja e a construção dum cofre para a guarda do dinheiro recolhido das esmolas que então somava já 80:000 reis na mão do bacharel José António Machado de Aguiar, conimbricense que casara em Lamas e lá residia. Mas ainda desta vez a obra não começou. Passaram onze anos. Em 1795, o visitador o Dr. Manuel Dias de Sousa, prior de Monsárros (o célebre defensor dos direitos dos seus fregueses na questão muito conhecida) esteve em Lamas no dia 5 de Junho e perante a exiguidade e ruína do templo ordenou que se recolhesse mais dinheiro por fintas lançadas ao povo, para que, na primavera do ano seguinte a obra começasse. Na verdade, fizeram-se os projectos e reuniram-se materiais; mas como a obra foi calculada em 5:000 cruzados, o juiz da Igreja, então Sebastião José Domingues, do lugar das Fervenças e pessoa influente e activa, requereu para o Desembargo do Paço, em 1798, provisão que autorizasse a finta pelos fregueses. O Desembargo despachou que o Provedor da Comarca informasse depois de ouvir a Câmara, Nobreza e Povo do concelho; recebida a ordem em 5 de Janeiro de 1799, da Provedoria; a Câmara com os braços da Nobreza e Povo reuniu em Lamas e verificando as necessidades da obra, determinou que as confrarias dessem 200:000 reis e o que faltasse fosse fintado pelo povo. A 3 de Maio a Provedoria publicou edital para arrematação da obra — edital só afixado legalmente em 19 de Junho. Mas apenas apareceu um concorrente, certo Manuel José da Silva que lançou 2:800:000 reis. O Provedor, passado um ano é que se resolveu a ir a Lamas, acompanhado por peritos, vistoriar e resolver. Encontrou muito material, não só pedra lavrada mas quase toda a madeira necessária; verificou que o povo queria templo que «não só por sua grandeza mas ainda pela construção, fosse capaz, de acomodar dentro em si toda a povoação deste mesmo lugar e freguesia»; e com os peritos (que eram dois pedreiros de Coimbra) avaliou-se a obra em 2:600$000 reis ou 6:500 cruzados, quantia superior á primitivamente calculada. O Provedor voltou para Coimbra e só quase dois anos depois (!) é que informou o Desembargo da diligência que fez: disse que, na verdade, a igreja estava em tal estado que poucas se poderão mostrar em tanta ruína e indecência; entendeu que se devia aproveitar todo o imaterial acumulado há anos e que a importância de 2:600$000 reis não incluía a factura da capela-mor e sacristia pois estas competiam ao Prior da freguesia de Miranda (á qual Lamas estava anexa) e se este se recusasse se deveria proceder a sequestro nas rendas ou dízimos. Juntamente com a informação iam os Apontamentos da nova Igreja, dos quais constava que deveria ter 92 palmos de comprido por 38 de largo (ou sejam 20,24m x 8,36m) com paredes de 5 palmos de grossura (1,100m); que deveria ter de altura, por fora, 45 palmos e por dentro até á cimalha, 35 (respectivamente 9,90 e 7,70m). O Desembargo, em resposta, mandou pedir novas informações e ouvir a opinião do Prior da matriz que, neste caso tinha que abrir as duas portas do cofre para não sofrer aborrecimentos. Sebastião José Domingues era talvez o que hoje se chama dinâmico e, segundo reza a história parece que não era muito para graças. Vamos ver. “Mirante”, Ano 7º, nº 75, 1 jun. 1984, f. 1, 3 |
Lamas (A Igreja) O sr. Director de “Mirante” pediu-me em tempos que fizesse um estudo sobre Marcelo António Fernandes (o índia), ilustre filho da freguesia de Lamas. Tenho em meu poder uma cópia do seu testamento de 1847 que nos vai dar notícias importantes acerca da sua fabulosa fortuna e das suas andanças pelo mundo. Lá iremos a seu tempo. Hoje vamos terminar a transcrição das notas que B. Pimenta publicou sobre a restauração da igreja de Lamas no “Diário de Coimbra” de 3-5-951, ao qual pedimos vénia para no-las deixar publicar aqui.
Em 1802, quando o Desembargo do Paço mandou ouvir o prior de Miranda acerca da obra da igreja de Lamas, ocupava a cadeira paroquial, desde 1790, o bacharel Francisco Brandão Pereira da Silva, de Oliveira do Bairro, com cerca de 59 anos de idade. Tinha uma quinta no Valmeão, junto a Celas, subúrbios de Coimbra para onde gostava de fugir muitas vezes, talvez por se sentir doente ou se não dar bem na terra, e deixava aos curas os cuidados da freguesia. A intimação do Desembargo do Paço parece que lhe não agradou e não a cumpriu. Deixou correr o tempo que é, em regra, bom conselheiro. Mas Sebastião José Domingues, o juiz da igreja, é que não esteve com meias medidas e requereu ao Desembargo nova intimação; este concordou e em 19 de Agosto passou provisão nos termos do requerimento. Mas o prior continuou com orelhas moucas o que fez com que Sebastião Domingues apelasse para o Provedor da Comarca— o qual dando razão ao requerimento mandou-o com vista ao prior em fins de Outubro. O prior Pereira da Silva, então, respondeu com habilidade e fugindo a uma resposta clara: mostrou-se melindrado por não ter sido ouvido de começo como seria natural; pois a verdade é que não concordava com a construção do novo templo, obra muito cara para a pobreza da freguesia e entendia que com certos consertos e arranjos que indicava, o velho edifício ficaria bom. O terrível juiz da Igreja, porém; é que foi claro: expôs ao Provedor que a resposta do prior era o modo de fugir á obrigação, que, o que ele não queria era gastar como devia os seus 11:000 cruzados de rendimento da matriz e encobria assim com o interesse pelos fregueses de Lamas o desejo de opor obstáculos e delongas á construção. E a verdade é que a obra não começava. O Provedor, em Abril de 1803 fez novas diligências que concluíram pela urgente necessidade da obra; essas diligências subiram ao Desembargo; daqui, em Março de 1804, seguiram para o Procurador da Coroa que promoveu a provisão régia de 4 de Junho desse ano que autorizava a saída das verbas das confrarias ao mesmo tempo que o Desembargo do Paço expedia a provisão em nome de Sebastião José Domingues «para se proceder á finta pelos moradores (...) para as obras da igreja. O trabalho que deu e a papelada que amontoou nos arquivos a igreja de Lamas ! (1). Mas... ai de nós! As obras lá começaram mas devagar; e muito material acumulado há tempo ia desaparecendo, e quando, em Agosto do ano imediato o visitador foi a Lamas, alguns fregueses que depuseram acusaram Sebastião Domingues de não querer largar o cargo de juiz da igreja «para acabar de gastar os bens da fábrica menor» e consumir «os dinheiros da dita fabrica» e de tal modo que «por culpa dele se não tem feito a igreja» etc. etc. Como isto era matéria confidencial, não haveria procedimento legal; mas parece que lhe tiraram a direcção da obra e a consequente administração dos dinheiros que passou para o cura que então era o Padre Manuel Fernandes, auxiliado por o Padre Caetano Moreira de Carvalho, natural da freguesia(2) e, ao tempo, sem ocupação certa; e, ainda por cima, intimado, em 1807, para prestar contas na Provedoria. Sebastião Domingues, porém, alegou que as não prestava sem proceder contra os dois reverendos que lhe tiraram a direcção da obra; por outro lado, a Câmara Eclesiástica reclamou que deveria ser perante ela que as contas se deviam dar — e finalmente em Abril desse ano de 1807 parece que ficaram as contas fechadas e a obra concluída a contento de todos. E assim se fechou o episódio que, bem esmiuçado daria uma saborosa novela em que este juiz da igreja seria o centro A igreja, porém, teve pouca sorte: no Inverno de 1810-1811 durante a campanha de Massena, foi queimada pelos invasores; os prejuízos foram avaliados em oito contos e oitocentos mil reis — mais do dobro do que custou a construção toda uns poucos de anos antes. Vê-se que os erros nas contas continuavam (1) Tudo isto se pode ver, no Arquivo da Câmara Eclesiástica de Coimbra, no da Provedoria da mesma cidade; e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, nas secções do Desembargo do Paço e Chancelaria de D.Maria. (2) Não se confunda este Padre Caetano Moreira de Carvalho que era do Lombo, com o seu contemporâneo Caetano Ferreira que era de Pousafoles (Nota de “Mirante”). “Mirante”, Ano 7º, nº 76, 1 jul.1984, f. 1, 2 |
Lamas(A Igreja) Vamos hoje terminar as notícias sobre a restauração da igreja de Lamas. Na sexta-feira Santa de 1969, conversando com um antigo pároco de Góis, soube que em Vila Nova do Ceira ainda há pessoas com o apelido de Alvarinhas. A descendência deste artista não se extinguiu, pois, completamente, graças a Deus. É que na Acta da Junta da Paróquia de Lamas de 17-6-883, se tratou da arrematação da pintura “dum painel que tape a boca do camarim do altar-mor, e da construção do guarda-vento”. Foi arrematante João Francisco Alvarinhas, residente na vila de Lousã, sendo 16$5OO para o pano do camarim e 52$000 para o guarda-vento. “Pintor popular” é como o classifica Nogueira Gonçalves mas era o melhor que havia no tempo. Deve ter sido ele que pintou a fresco, na capela-mor, os quatro Evangelistas, reproduzindo os mesmos que na igreja matriz de Miranda aparecem no Corpo do templo. É de notar também no tecto da dita capela-mor da igreja de Lamas como Alvarinhas soube representar as virtudes teologais. De 1879 a 1885 as Actas da Junta da Paróquia (não se esqueça que estas coisas se passaram antes da separação da Igreja-Estado) falam em diversos orçamentos relativos à restauração da igreja. Esses orçamentos nunca atingem os 300$000. Referem-se a telhado, forro, soalho e baptistério. Deduz-se que, após a destruição causada pelos franceses, se tinham feito pequenas obras para remediar. Na Acta de 10-7-876, sendo pároco Manuel Teixeira Bacelar, de Rio de Galinhas, discute-se a necessidade da grande reparação dos telhados e estuques do templo, do Arco Cruzeiro para baixo, que ameaçam ruína. Verificou-se num projecto de orçamento que podiam dispor de 30$875 do saldo anterior da Junta e de 75$000 da Confraria do Santíssimo. Mas as obras não se vêem! Na Acta de 10-1-879 escreve-se:-“Ahi também presente o reverendíssimo vigário desta freguesia Manoel Teixeira Bacellar o qual disse que não tendo a junta de que foi presidente e thezoureiro (naturalmente, mandado executar as obras projectadas), tinha recebido a receita da mesma junta e não obstante não terem ainda sido aprovadas as contas da sua gerência e não podendo prever qual o saldo por que a Junta de que fez parte, é responsável, vinha contudo entregar a quantia de 222$710 réis”. Assina esta Acta mas em nenhuma outra volta a aparecer o seu nome, embora continue pároco de Lamas até ao fim de 1887. Em 1-10-1882, há uma sessão extraordinária para se proceder à arrematação da obra do. “alçamento” das paredes e madeirar, guarda-pó, telhar a capela-mor, devendo a obra estar concluída no fim de Novembro do dito ano. Sobre um selo fiscal de 500 réis assina o arrematante João Gomes de Chão de Lamas. Preço 33$500. Da Acta de 10-12-1882 consta ter-se feito novo contrato para o acabamento da capela-mor, altar, retábulo, telhado da mesma e da sacristia por 55$460 réis. Sobre um selo de 500 réis assina o arrematante Domingos Luís Torres de Condeixa-a-Nova. Em 1900 foi construída a Sala dos Sessões à custa dum subsídio da Confraria do Santíssimo. No mesmo ano foi construída a escada em madeira para o coro e torre bem como o acesso ao púlpito e sala de sessões. Arremata esse serviço por 22$980 réis António Francisco, viúvo do Bubau. Assinou sobre um selo de 1$000 réis. Por aqui nos ficamos visto que as obras posteriores desde o acrescentamento da torre relógio e pára-raios até à escada para o coro, a cimento e o novo pavimento da igreja e sacristia, estão na memória dos vivos. Fique, todavia, documentado o aparecimento do selo fiscal e o grande salto que o dinheiro deu na desvalorização. “Mirante”, Ano 7º, nº 77, 1 de ago 1984, f. 1, 2 |