História duma enguia

 

O escultor da Pietá ou do David matando Golias Mi­guel Angelo dizia das pe­dras: “as figuras viam-se no interior das pedras, bas­tando que se tirasse a estas o que estava a mais” (n.° 1864 de “O Dia”),

Isto faz-me lembrar um falecido Amigo o Taveirinha a quem um laureado escritor contemporâneo cha­ma “Alvarenga” que no seu jardim coleccionava pedras, muitas pedras... e nos en­cantava a interpretar a sua fala.

Também eu aprendi a ou­vir a fala das pedras e a muitas guardo por ter pas­sado, várias vezes, junto delas, a dizerem-me:

Leva-me! Leva-me!

E um dia trouxe um fós­sil cuja história vou ver se consigo interpretar:

Era uma vez uma enguia que, ao sair do ovo no mar dos Sargaços, era pequenina, pequenina como, um miniverme.

Sequiosa de água doce, vogou até à foz do Mondego, na Lusitânea.

Nesse tempo, este rincão, “à beira-mar plantado”, era comandado pelos árabes.

E veio pelo rio acima até chegar às mediações da Granja do Ulmeiro; um pouco ao norte, mete por ali dentro.

Então já era um verme es­tranho, negro como um car­vão, com mais de dez cen­tímetros de comprimento, cabecita e olhos como de uma cobra, mas a cauda achatada como um remo.

Teve de subir alguns açu­des, não sei bem se pelo lado da Eira Pedrinha, se mesmo pelo meio de Condeixa-a-Nova, ali por baixo daquela casa que os france­ses queimaram, mais tarde, da família dos Sás.

Com andar de lesma, junto de numerosas companheiras, parecia que os açúdes ti­nham franjas negras. E con­tinuou subindo até a um po­ço nas imediações do Zambujal ou do Algar de Janeia.

Mas chegou o dia em que a pobre ribeira que conduz as águas dali e passa por Alcabideque, secou comple­tamente e o resto do seu líquido sumiu-se naqueles ter­renos calcáreos.

Não longe do outeiro de Pêga que, mais tarde, os sol­dados de Coimbra bombar­deavam, em exercícios de fogos reais conseguiu libertar-se do poço com o fito secreto de ser mãe e regres­sar ao mar dos Sargaços. Que entusiasmo no seu coraçãozito de eiró (que nesse tempo já se tornara um erô com bem cinco centímetros de diâmetro e uns sessenta ou setenta de comprimento) naquela viagem gloriosa!

Todavia ó desgraça a ribeira secou inteiramente e a infeliz enguia adulta foi obrigada a procurar um sí­tio húmido, enrodilhando-se nuns fetos que ali abunda­vam. Foi talvez no tempo do Conde Dom Henrique ou de seu filho Dom Afonso que por ali passou à conquista de Santarém e ficou a pri­meira noite, depois de sair de Coimbra, em Alfafar.

A ribeirita não voltou a encher a tempo de encontrar a enguia viva.

O calcáreo apoderou-se dela como dum osso fractu­rado para o refazer; transformou-o em pedra.

Este calhau de quase dez centímetros de comprimento, ostentando as delicadas fo­lhinhas dos fetos que lhe serviram de mortalha, gra­vadas em seu dorso, veio parar às minhas mãos.

E agora fica um marco miliário na minha vida pois que escrevi estas linhas na minha primeira viagem de avião, na Alitália, sobre Mar­selha a caminho de Milão, Roma, Terra Santa. A 10 000 metros de altura, a 900 qui­lómetros - hora, depois de uma hora e trinta de voo, a partir de Lisboa, impressionaram-me as vozes desta pedra.

“Mirante”, Ano 5, n. ?, ago 1982, p.1, 2