Lamas

(Cereais)

 

 

Ainda sou do tempo em que o melhor mimo que as mamãs nos traziam da feira, era um pedaço de pão de trigo.

Aquele pão de coroa da tia Amélia do Vale até era doce!

Só o pão de trigo é que mere­cia o nome de pão. Ao de milho chamávamos boroa.

Mas, no princípio da freguesia, não era assim. É sabido que foi no tempo das descobertas que o milho veio do México para a Eu­ropa.

Antes da boroa, todos comiam pão de trigo, de cevada ou cen­teio. Sem pão é que se não passava.

Até o Evangelho fala nas mós manuais e nas asinárias ou movi­das por jumentos. Ninguém co­nhecia então os moinhos de vento ou os tocados a água. Parece que foram os Sarracenos que inven­taram os moinhos de vento e de água quando ocuparam o nosso território.

Temos em Lamas um sítio cha­mado «outeiro da mó». De cer­teza que é uma lembrança dum moinho de vento que ali houve no tempo dos mouros.

Sempre me convenci de que aquele nome «Malveda» dumas terras, próximas da Benda-Fé, foi ao princípio «mó velhas».

Não é preciso ser muito velho para nos lembrarmos dos moi­nhos de vento do Cabeço, daquele outeiro entre Chão de Lamas e a Volta do Sabina, do monte so­branceiro às Cerdeiras e o do Ra­mos que ainda se divisa, próximo da Gateira.

Os primeiros moleiros dos nos­sos sítios deviam ter os seus moi­nhos à beira do rio Dueça, nas proximidades do Fraldeu. Deduzo essa hipótese do nome com que baptizaram o lugar de Pousafoles. Sabido com efeito que anti­gamente os taleigos eram feitos de peles de animais a que cha­mavam foles e que os muares não podiam subir a ladeira com a carga completa, para distribuir pelos fregueses, vinham uma vez com meia carga e depois iam buscar a outra metade, sítio onde poisavam os foles, ficou  pois Pousafoles.

Cheguei a esta conclusão por ouvir, na serra, chamar «outeiro da areia» aos sítios aonde as mu­lheres traziam as cestas de areia por o carro não poder ir ao fundo do vale.

Mas os moinhos de água come­çaram a proliferar na freguesia desde tempos muitos remotos.

Sem dúvida, o primeiro foi o do Paço, em Urzelhe. São dois casais de pedras que ainda hoje rodam para juntamente com o moinho, accionado pela electrici­dade, puderam atender á nume­rosa clientela que se estende por Almalaguês e Vila Seca.

Assim como a comida, prepa­rada ao lume das nossas larei­ras, é mais gostosa, assim tam­bém, a farinha que se fabrica nos moinhos de água, é mais apreciada.

Logo que o milho chegou às nossas terras, a sua produção começou a aumentar por causa dos muitos terrenos de rega. O trigo e a cevada quase desapa­receram.

A colheita do milho era uma festa. Primeiro, era a escamisada. Praticamente juntava-se toda a população do lugar à roda da montanha de espigas, ao serão. Os pequenos queriam ficar todos pertinho dos velhos para lhes ou­vir os contos... Delirávamos com as historietas dos tios Manuel Miguel e Francisco Carvalho.

Em .poucos minutos, os gran­des poceiros de verga ficavam repletos de espigas escamisadas. Os rapazes não tinham tempo de se sentar. Quando vinham da eira com os poceiros vazios, já encontravam os outros cheios.

De repente ouvia-se uma excla­mação: — Um abraço!

Era uma espiga com os grãos vermelhos que acabava de se en­contrar. Era sempre um rapaz ou rapariga que encontrava a es­piga — Ele ou ela tinha de fazer o sacrifício de dar um abraço a cada um dos presentes.

Ainda me lembro do respeito com que os rapazes mal tocavam nos ombros das raparigas, com as caras muito afastadas, e elas na mesma. Ainda não tinham aparecido as lições de despudor da TV.

Acabada a escamisada, iam to­dos para a eira. Distribuía-se pe­los homens cachaça; pelas mu­lheres e crianças café.

Dez ou doze rapazes começa­vam a bater, certinhos nas espi­gas com os manguais. Os outros vão chegando as espigas que fo­gem. Os carolos, acabados de ser libertos de algum bago de milho, vão sendo retirados para fora da eira.

Com tanta gente, passadas o máximo duas horas, só restam no meio da eira setenta ou cem al­queires de milho.

A terminar, a alegria obriga a mocidade a um bailarico em vol­ta da rima de grão, mesmo sem acompanhamento de viola ou har­mónica.

Como tudo mudou!

O próprio pároco, ao passo que no bairro recebia a côngrua em trigo, em Lamas recebia-a em milho. Aquela arca monumen­tal que ali está na loja, enchia-se.

Deste modo, era pela quanti­dade de milho que cada família recolhia, que se avaliavam as suas  posses.

Era preciso cozer-se uma for­nada de boroa em cada semana e ainda poder vender alguns alqueiritos na feira para os alfi­netes.

Para não ter de pagar a ma­quia ao moleiro, começaram a aparecer muitos moinhos na fre­guesia. Contam-se três na Ribeira de Fervenças, os do Carrô, um ao fundo da quinta da Murada à beira do Dueça, um perto da foz da ribeira de Urzelhe, o da Cabrieira, o que fica entre o Vale Salgueira e o lagar, os do Celaviza, ao Pisão, o da quinta da Azenha, o do sr. Joaquim de Ben­to, o do sr. José Lopes Simões, os do Paço, o do sr. Angelo Alvorado, o que fica ao fundo do Vale da Pedrinha, ao Porto Carro, o do Ferreirita entre Água do Forno de Cima e as Lapinhas e três na Ribeira que vem da Fonte Freixo desaguar ao fundo de Água do Forno de Cima.

Como infelizmente, de hoje em dia, se não faz tanto caso da cul­tura do milho e preferem dar muito que fazer ao padeiro, a grande maioria dos moinhos enu­merados hão trabalham e de al­guns nem vestígios restam.

O que acontece aqui, acontece noutros sítios como na Eira Pe­drinha e Alcabideque. Conforme se disse acima, os moleiros de Urzelhe tem de ir até Bruscos, Alcouce, Rio de Galinhas e Monforte, ao passo que o de Lamas abastece Podentes e Alfafar...

“Mirante”, Ano 9º, nº 103, 2 out.1986, f. 3