Lamas (Azeite)
O azeite é uma das maiores riquezas da nossa região. Em Lisboa há os Olivais, em Coimbra Santo António dos Olivais; mas aqui em Lamas também temos (ou tivemos) a tia Conceição do Olival. Quer isto dizer que houve uma época em que abundavam mais as oliveiras que os pinheiros. Estou a lembrar-me de que apanhei azeitona na Manguinha, na Cabeça Gorda, na Cabrieira, no Carrô, nos Olheiros, no Vale de Fraldeu, etc-, sítios que os novos não acreditarão que foram olival. Lembro-me da afirmação dum advogado que não perdia questões, e que morreu nos meus braços há uns cinquenta anos: «A oliveira é a única árvore que paga o amanho». Ele sabia porque possuía muito olival e dois lagares de azeite. À medida que o pinhal foi conquistando os olivais, começaram a mandar as oliveiras para as bordas das terras amanhadas. Assim, também estas recebiam alguma coisa dos cuidados com horta e cereais. Ao contrário pois do que se vê na terra Santa e até nos olivais antigos em que as oliveiras são de pequeno porte, apareceram árvores tamanhas que parecem querer ir ao lagar sozinhas... Na região da Pampilhosa da Serra, as oliveiras não têm metade da folhagem que ostentam as da nossa terra. Por isso, em quinze anos em que por aí vivi, jamais vi fustigar as árvores com varas, como aqui se usa, para colher a azeitona. Homens e mulheres sobem às oliveiras por meio de escadas, com um cesto a tiracolo e armados de um simples cambo. Respigam quase toda a azeitona e só os três ou quatro bagos pendentes dalgum ramito a que se não chega com a mão, são varejados carinhosamente com o cabo do cambo. Foi com segunda intenção que escrevi carinhosamente. «Com efeito, as nossas oliveiras são batidas tão cruelmente que o chão fica todo coberto de rolhas e .pequenos ramos. Alguma azeitona é atirada a mais de cinquenta metros. O resultado é serem muito raros os anos em que já não há azeite, ao passo que aqui era ano sim, ano não, e agora nem isso. Antigamente havia incomparavelmente mais azeitona que agora. Eram vários os que recolhiam 20 alqueires, 50 e até cem. Quando era criança, alta madrugada, enchia-se a minha espaçosa cozinha de rapazes e raparigas — era um rancho — para a apanha da azeitona. Enquanto se preparava as sopas de nabos com broa por baixo e nada azeite, isto é, a nadarem em azeite, os rapazes iam, a um pinhal próximo, roçar e carregar um molho de mato. Ao regressarem, ainda escuro, comiam alegremente a sopa que já os esperava. Nunca a comi, tão saborosa, como então. Ao chegarem ao olival — às vezes tudo coberto de geada — acendiam uma grande fogueira para «desengadanhar» as mãos entorpecidas. Chegavam a levar no bolso, embrulhadas em farrapos, pedras aquecidas, para afugentarem o frio. Acabada de varejar a primeira oliveira, começavam as raparigas a apanhar com ambas as mãos, os bagos caídos para os cestos. Parece que estou a ouvir os punhados de azeitona a cair continuadamente nos cestos... Os varejadores não se podiam descuidar, se as raparigas findavam a apanha e os encontravam sem terem ainda acabado de varejar a outra oliveira, ouvia-se uma algazarra a dizerem que lhes «davam com o bago no...traseiro». Ao meio dia, comia-se uma merenda— quase sempre sardinha assada, à descrição. Não era como noutras alturas em que uma sardinha dava para três. Tempos de fome e escravidão— dizem alguns. Não sei porquê, uma vez que havia mais alegria, mais fartura e bastava o tio Zé Pereira com as suas mezinhas para curar os nossos achaques. Mesmo os que não tinham oliveiras, arranjavam azeite para todo o ano. Até aos Santos (um de Novembro) ninguém se importava de que lhe apanhassem a azeitona caída; e, depois da apanha, também os proprietários se não incomodavam de que os estranhos rebuscassem a azeitona abandonada — era o rabusco. Falando de azeitona e azeite, temos de fazer uma referência também aos lagares. Do primeiro lagar que houve na freguesia, não resta senão uma recordação. O «lagar velho» deve ter sido ao cimo do Vale da Pedrinha, nas proximidades da Mata da Sé. Houve de certeza, em tempos passados alguma corrente de água que por ali passava, para mover a grande roda desse lagar e abastecer a olaria da Eira Velha em que se falou mais duma vez nestas pobres notícias. Do segundo lagar também quase só resta o nome. Aquele sítio, próximo da vivenda do Quim Sequeira, ainda se chama o Lagar Cimeiro. A água vinha de bastante longe. Ainda hoje se pede notar que saía da ribeira, naquele sítio onde o caminho de pé de Água do Forno de Baixo atravessa para o Vale da Pedrinha. Houve o lagar de Fervenças que foi desmontado quando eu já frequentava a Instrução Primária, há perto de setenta anos. Actualmente só restam na freguesia dois lagares — o do Pisão e o de Chão de Lamas. É claro que estão ambos mecanizados. Por isso, as prensas onde se empilham as ceiras, cheias de massa anegreada de azeitona, moída pelas galgas, já não são espremidas pelo peso formidável das varas que eram (no lagar do Pisão) duas sobreiras gigantes com cerca de um metro de diâmetro na parte mais grossa e ainda, com o fuso, .punham suspensa uma enorme pedra...Uma água negra com fios amarelos de azeite, a albufeira, corria em grande quantidade para as tarefas. Se houvesse descuido, transbordavam. Então o chefe (mostre) com uma varinha, ia procurando descobrir a que altura estava a água. Por cima, era só azeite. O seu ajudante (mancebo) destapava um Curo que estava perto do fundo até que o mestre imperava: tape! O mancebo respondia logo: tapou! Hoje não só as galgas são movidas com energia eléctrica. É essa força invisível que também aperta as prensas. É tudo moderno. Já não há as deliciosas tibornas e bajancas. Porém, com o aperto que transforma a massa em pedras, escapa muito azeite, sem se dar por isso. Lembro-me de que fui pároco duma Igreja (Cabril) que era proprietária de dois lagares. Mais de uma vez observei que no canteiro para onde escorria a albufeira das tarefas se notava lamentavelmente o azeite que se perdia... Para evitar isso, os lagares modernos têm o chamado poço ladrão. A água, saída das tarefas, fica depositada nesse poço e com o azeite vem ao cimo, não o deixam ir rio abaixo. Não é nenhum roubo. A massa espremida era antigamente conservada nas covas do «baganho». No tempo da engorda dos suínos, antes da matança, davam-lhes, com farinha, esse baganho que os animais comiam sofregamente como se fosse uma ração. Actualmente esses poços estão abandonados. A massa prensada é vendida para voltar a ser tratada e dela extraírem mais azeite. “Mirante”, Ano 9º, nº 104, 1 set.1986, f. 1, 3 |