A nossa Língua

 

Quando estudei latim, se alguém pronunciava alguma palavra sem pôr o acento tónico onde devia, os que sabiam alguma coisa, até se arrepiavam.

Também me arrepio, quando ouço dizer, mesmo na Rádio Renascença (!) «periúdo» visto que a palavra se escreve e deve ler período.

O sufixo «udo» aparece num sem número de palavras latinas, como «longitudo», «altitudo», «latitudo» que deram em português: longitude, altitude e latitude. Por isso, o nosso «udo» não vem do latim.

Este sufixo dá às palavras um significado que tem qualquer coisa de antipático. Lembre-se como nos faz sorrir, dizer de alguém que é barrigudo, cachaçudo, cabeçudo, pançudo...

Porém, nem sempre assim foi, como se deduz de haver povoações, onde temos bons amigos, com o nome de Beiçudo e Orelhudo; não consta que os seus habitantes tenham beiços grossos como os negros ou orelhas grandes, fora do vulgar. 

Folheando uma vez um livro antigo do Cabido de Coimbra, deparei com esta nota: «Emprazamento que o Cabido fez da Quinta do Beiçudo ao Cónego Afonso Martins. Foram testemunhas, etc». Por três vezes se fala no Beiçudo nos séculos XIV, XV e XVI, escre­vendo sempre o nome, data, povoação de Vila Seca do mesmo modo, isto é, Beiçudo.

Nos registos de Baptismo da mesma freguesia de Vila Seca, a primeira vez em que aparece Beiçudo, com a cedilha, é em 31-7-1633. Contudo, num registo de 2-10-1638, por exemplo, aparecem, como padrinhos F. e T. moco solteiro e moca solteira. Nos registos de Lamas nunca encontro, por esse tempo, a palavra Fervenças mas, várias vezes, Fervensas e Fervenssas.

Todavia, estou convencido de que apesar de escre­verem Beicudo, môco e, môca, liam Beiçudo, moço e moça. Lembremos que, embora escrevamos: a, b, c, d, sempre lemos: a, b, cê, d, e abecedário.

A Cedilha, portanto, só muito tarde começou  usar-se na nossa língua.

Talvez o til ao entrar na nossa língua, seja o culpado daquele som que sai pelo nariz que levou o poeta a escrever: O cão que faz.   ão, ão, ão é um amigo como aqueles que o são.

Julgo que não se encontra outra lín­gua. Certamente veio-nos da Espanha. Houve tempo em que Gil Vicente escrevia alguns dos seus autos na língua espanhola.

Os espanhóis escrevem España e Azaña mas, enquanto nós dizemos coração, eles dizem “corazon”.

Nos antigos livros do Baptismo em Lamas, vê-se que há quem aborreça o til e assim encontramos o lugar de Pisam e Capellam, Capitam, Cham de Lamas, Joam Simoens e também Simois. Mas em 1615 há um Cura que assina João Preto e em 1676 um João Lopes e outro de Miranda João Alvares, além de fôrão, Cris­tóvão e Louzã enquanto dizem Louzanense que vem de Louzam.

Tenho, à minha frente um dos clássicos da língua portuguesa o P.e António Vieira. È um “Sermam da Rainha Santa, pregado em Roma em 1674”. É de notar o abuso do til. Apesar do “Sermam” escreve continua­mente: Sãta, argumênto, talêntos.

Donde virá a palavra “Tiago”? Parece-me que foi o abuso do til que criou esta palavra. Querem ver? Em latim era e é “Sanctus Jacob ou Iacob”. Os fran­ceses que não querem nada com o til, lêem: “Saint Jaques”; os espanhóis lêem: “Santiago”; e os portu­gueses roubam o t ao santo, em vez de santo dizem São e com a letra roubada, fazem uma nova palavra: Tiago!

Desde sempre ouvi dizer que é o povo que faz a língua e que os vizinhos de Coimbra são os que melhor falam o português. Não tenhamos só a fama mas também o proveito e não abusemos do til.

“Mirante”, Ano 3, nº 28 jul 1980, p. 1, 2