Lamas

(Religião)

 

Certos de que o poder de César e o poder da Religião procedem da mesma fonte, e, mais ainda, sendo os súbditos de César e os agentes do poder civil baptizados e crentes, é uma lei absurda a separação entre a Igreja e o Estado.

Não sou eu que o digo, é o autor da “Velhice do Padre Eterno” quando lhe chama “uma lei cheia de garras e colmilhos”.

Para mim é uma aberração uma freguesia religiosa sem existência civil (São José de Coimbra) ou uma freguesia civil sem existência religiosa (Guia, Ereira).

Por definição, freguesia ou paróquia não se compreendem se não estiverem unidas à Religião Católica. Com efeito, freguesia significa rebanho fiel, no sentido em que Cristo disse: “Eu sou o bom Pastor e vós as ovelhas”.

Paróquia, porém, significa certo território cujos habitantes são assistidos por um Pároco.

Por essa razão, é que se vê que nos livros das Actas das Juntas de Freguesia anteriores a 1910, o Pároco era o Presidente nato da Junta.

Primitivamente as freguesias eram fundadas sob a dependência dum Convento do Cabido, da Mitra, da Universidade, duma família fidalga, etc. Os Párocos eram, assim, verdadeiros representantes desses patronos.

Deste modo, se o patrono era um Convento de padres, o Abade ou Prior desse Convento é que era o Pároco. O sacerdote, seu representante na paróquia, era então

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Lamas, dava ao Pároco 45.000 reis, segundo informa Pinho tratado por Sr. Abade ou Prior.

A minha primeira paróquia (Gesteira) tinha por patrono o Convento de Ceiça (Paião). É certo que nunca me trataram por Abade mas lembro-me duma propriedade que lá existe, a que cha­mam, ainda hoje, o Campo do Abade.

Se, contudo, o patrono era um Convento de freiras ou uma família fidalga, por não poderem exercer jurisdição eclesiástica, tratavam o pároco por Cura ou Vigário.

Os primeiros párocos de Lamas eram Curas. O primeiro a assinar-se “Vigário”, foi o Padre Doutor Manuel Esteves de Carvalho que era de Chão de Lamas. Terá sido no tempo em que o patrono de Lamas deixou de ser o Prior de Miranda para ser o Duque de Lafões?

O patrono da freguesia é que recebia as contribuições dos fregueses e, no caso de Leal. Além disso, auferia o pé do altar, isto é, os emolumentos dos Baptizados, Casamentos e Óbitos.

Os óbitos sobretudo eram a melhor fonte de receita dos padres. Talvez venha a propósito referir que na altura em que me ordenei, em 1931, tive de pedir emprestados, 600$00. Foi um tio que mos emprestou, com esta condição: Se os pagasse no prazo de seis meses, dizia só “muito obrigado”. Se demorasse mais, tinha de dar o juro de 12 por cento.

Calhou-me ser despachado, como coadjutor, para uma populosa vila (llhavo) onde morria muita juventude por causa da tuberculose. Gostavam de levar, a acompanhar os funerais, vários padres. Deste modo, todas as semanas assistia a mais que um enterro. Por isso, foi possível pagar a dívida sem juros.

Estive depois (1940-53) numa paróquia em que nem um defunto ficou sem ofícios. As paróquias vizinhas tinham costume igual.

Antes da Lei de Separação, todos os que faleciam, tinham ofícios. Daí resultava que vários padres não se importavam de não ter freguesia. Na verdade, a assistência aos ofícios, na sua paróquia e nas vizinhas, dava-lhes o rendimento suficiente.

Mas a crença no valor dos sufrágios pelos defuntos manifestava-se de outros modos. Houve igrejas e conventos que se tornaram grandes proprietários por lhes deixarem heranças cujo rendimento desse para celebrar, em certo altar, diária, semanal ou anualmente, missa e outros actos de culto. Haja em vista a paróquia de São Pedro de Bruscos que era a maior proprietária da freguesia o que lhe permitiu sustentar desde D. Sancho I, um hospital regional e uma albergaria para os mendigos. Até 1910, dava a ceia do mendigo e, no dia seguinte, se fosse preciso, davam-lhe um vintém de esmola e conduziam-no a cavalo, à Misericórdia de Almalaguês ou de Penela.

A crença no valor dos sufrágios pelos defuntos é que, até 1834, permitiu aos Conventos de Celas e de Santa Clara que possuíssem tantos bens na freguesia de Lamas que tinham o seu feitor para olhar por eles.

Entrem um dia na igreja da Graça em Coimbra. Poderão ver mais que uma inscrição em que se lê que certas famílias dotaram aquele altar de rendimento suficiente para nele se celebrar missa em certos dias, pelas almas dos seus mortos.

Para terminar, autorizem-me que transcreva da “Voz da Graça” (Pedrógão Grande) de 15-11-984:

No ano de 1730, no reinado de D. João V, um francês chamado César, mandou para o seu país um longo relato das suas impressões sobre Lisboa. Desse documento consta esta passagem: “Outra beleza de Lisboa é o vasto terreiro do Paço, assim denominado por o palácio real limitar um dos seus lados. (Notem que é uma descrição anterior ao terramoto de 1755). É muito comprido e muito largo, apenas separado do rio por uma muralha que forma parapeito. Ali se realizam as touradas. Todos os comerciantes portugueses e estrangeiros se reúnem nesta praça. A primeira vez que ali fui a tais horas, fiquei surpreso de encontrar mais de mil pessoas que, falando dos seus negócios, faziam um barulho, um zumzum singular. Mais surpreendido fiquei quando, ao bater do meio-dia, em todas as igrejas e capelas da cidade, notei que todo o ruído repentinamente cessou, de modo a poder ouvir-se uma mosca e que, cada um puxando do seu terço, se punha de joelhos.

Aqui e além viam-se alguns protestantes que continuavam de pé, mas calados e descobertos. Não pude deixai de perguntar, em voz alta, a um dos meus amigos que estava comigo o que queria isto dizer, tendo-me ele feito sinal para me calar e tirar o chapéu. Este grande silêncio e genuflexão duraram cinco ou seis minutos, findos os quais, cada qual se levantou, se cobriu e continuou a falar de negócios.

O meu amigo disse-me então que o toque era o chamado “Angelus” e que, nesse momento, em todas as igrejas e capelas, se fazia a elevação, sendo obrigado todo o católico a ajoelhar, onde quer que se encontre e a rezar três Avé-Marias.

Mais me contou que, há não sei quantos anos, esta cerimonio motivou uma grande briga entre portugueses, ingleses, holandeses e outros protestantes, estabelecidos em Lisboa, pois os primeiros queriam forçar os outros a ajoelhar logo que tocava o 2”Angelus”. Azedou-se a questão, mas o Rei interveio, de­terminando que os protestantes ficariam de pé, quietos e calados, enquanto os católicos orassem. Os portugueses ficaram satisfeitos com esta decisão, mas os outros murmuravam.

Oh! como mudaram Lisboa e Portugal”.

Dá vontade de exclamar com Cícero:

“Ó têmpora, ó mores!” Que significa: “Oh tempos! Oh costumes”!

“Mirante”, Ano 8º, nº 87, 1 jun.1985, f. 1, 3

 

Lamas

(Mudanças)

 

Este artiguito é continua­ção do anterior. Da leitura dele avaliará o benévolo lei­tor a grande «mudança ope­rada no mundo das ideias na freguesia de Lamas.

Vou lembrar o que Dom Afonso Henriques (ainda se não assina como Rei de Por­tugal) preceituou no primeiro Foral concedido a Miran­da do Corvo, publicado no “Mirante” de Setembro de 1982:

“O Clérigo que aí morar tem os mesmos direitos que o soldado”. Mais adiante: “Aquele que receber uma in­júria dum vizinho, faça quei­xa ao Vigário e, se ele não se quiser emendar, obrigue-o a pagar um soldo e, se ele continuar na sua, de novo o multe com um soldo até entrar no caminho recto”.

O Vigário tinha que ver com a vida de cada um e re­conhecia-se a sua autoridade.

Vejam outro documento: “Desejando ter por Advogada diante de Deus, a Bem-aventurada Virgem, com o con­sentimento dos meus vassa­los, ordeno que este meu reino, minha gente, meus sucessores, figuremos debai­xo da tutela, protecção, de­fesa e amparo da Bem-aventurada Virgem Maria, etc.”

Há pouco tempo, reeditou-se a Vida de São Teotónio. Fiquei espantado quando vi que Dom Afonso Henriques, vestido de hábitos corais, to­mava parte nos ofícios reli­giosos dos frades de Santa Cruz de Coimbra. De resto, as suas convicções de pro­funda religiosidade estão bem atestadas na bandeira portuguesa que, através de todas as vicissitudes, man­tém impressas as Cinco Cha­gas de Cristo.

Li o célebre tratado de Fontainebleau de 29 de Ou­tubro de 1807. Embora Napoleão viesse a seguir à Revolução Francesa, começa: “Napoleón par la gràce de Dieu etc. etc.”.

Vê-se claramente que na França, apesar de tudo, Deus e o Imperador ainda manda­vam.

Hoje não é assim. O que o “Diário de Coimbra” de 4-3-985 diz: “Deus e o Impera­dor executados na China”, pode dizer-se de toda a parte.

Entre nós, Deus era invo­cado continuamente, até à República, nos documentos oficiais. Toma-se ao acaso, a circular da Junta Geral do Distrito de Coimbra ao Pre­sidente da Junta da Paróquia de Lamas, de 29 de Agosto de 1878. Termina com a fra­se sacramental: “Deus guar­de a V. S.ª”.

Agora veja-se uma Acta da Junta: “Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e ses­senta e seis, etc.”

Consultei, no Arquivo da Universidade de Coimbra, o Livro das Visitas do Arcedia­go de Penela, relativo ao ano de 1752. Diz assim:

“Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus X.to de mil sete centos e sincoenta e dous e aos vinte e tres diaz do mes de Ag.° do dito anno neste lugar e Freg.ª de La­mas... e a seguir procedeu-se ao inquérito acerca da vida dos paroquianos (devassa) para extirpar os escândalos que porventura houvesse. Aparecem várias denúncias, sendo as principais: a) con­tra Anna Bicha que vivia no Vale das Andarias escanda­losamente com um homem de Alfafar; b) contra Marcelo António Lobato de Fervenças e João Domingues, andam com ódio não entrando em casa um do outro; e c) con­tra uma certa tecedeira da Cervajota. Tem má língua, e costuma a dizer blasfé­mias e palavras malsoantes como mandar ao Diabo as almas”, etc. Foram repreen­didos e exortados a emendar-se.

Acabou já no nosso tempo o “Rol dos Confessados” on­de se tomava nota dos que vinham à “desobriga”. Os paroquianos que não iam à “desrisca” estavam sujeitos a ser expulsos da Confraria, a não poderem ser mordomos das festas, a não ser aceites como padrinhos do Baptismo e até a ser priva­dos de enterro religioso...

A liberdade dos tempos modernos acabou com mui­tos fingimentos. Não se confunda, todavia, liberdade com libertinagem.

Esta conduz à desagrega­ção moral da sociedade.

É o que acontece nos dias de hoje como se verifica pe­los jornais no seu rol infin­dável de crimes, roubos, sui­cídios, violências...

Foi sempre assim: desce o nível religioso, automatica­mente sobe o da criminali­dade.

“Mirante”, Ano 8º, nº 88, 1 jul.1985, f. 1, 3