Lamas

(Mulheres nas invasões francesas)

 

Escreve Campos Júnior em «A Filha do Polaco»: «O que as mulheres sofreram naquela guerra! Encheria um livro».

Não me refiro à freira de Beja cujas Cartas testemunharam a paixão pelo oficial francês que lhe incendiou o coração.

Não descrevo também os feitos da freira espanhola que armou em Joana d'Arc e, comandante duma guerrilha, se convenceu de que era capaz de libertar a Espanha dos exércitos napoleónicos.

Não me refiro mesmo a Laura Junot que se fez cronista da primeira invasão e se convenceu de que seria  rainha de Portugal.

Em artigo anterior, lembrei os «degenerados» que, à chegada de Junot a Lisboa, se foram pôr ao seu serviço, como se Portugal se houvesse tornado uma colónia da França.

Desse número foram os Condes da Ega. Raul Brandão, em «El Rei Junot», páginas 349, zomba quando escreve: «São quinhentas mulheres francesas e portuguesas, e a Ega, entre todas, triunfa, loira, diáfana, frágil, irreal.»

Grande humilhação sofreu quando ao virar da página dos costumes antigos para os tempos modernos, o intendente Pina Manique lhe ordenou que saísse do Camarote onde ostentava, à moda francesa, o nú artístico...

Mas o intendente foi destituído e a moda francesa triunfa.

A Condessa da Ega, porém, tem de retirar com os franceses da terceira invasão. Obriga o seu consorte a receber dinheiro de Napoleão e a pedinchar até à última. Morreu na Rússia aos 80 anos.

Uma outra mulher que impressiona, é a «pequena, marchala», amante de Massena, frágil e sonhadora rapariga, quase sempre envergando uma farda de Marechal. Com ela desabafava o chefe da terceira invasão. Ele precisou muitas vezes das suas palavras consoladoras. A inveja e traições de Ney, a derrota do Buçaco, o desaire de não poder furar as linhas de Torres Vedras, o recuo até Condeixa sem poder voltar a Coimbra, e a fuga (foi uma autêntica fuga) por Lamas e Miranda, em direcção a Foz de Arouce, onde se haviam de encontrar com as tropas que vinham de Tomar... e finalmente a sua destituição e entrega do comando a outro General... precisava bem de ter com quem desabafar.

Havia também damas muito honestas no acampamento. Refiro-me à filha do polaco, esposa do Capitão Luís de Castro e à esposa (Condessa de Barcelona) do General Francisco António Freire de Andrade Pego.

Era precisa uma grande dose de vaidade, amor, teimosia e coragem para se meterem em tamanhos perigos e trabalhos.

É claro que elas não se encontravam no aceso dos combates. Seguiam bem guardadas, com os feridos, os prisioneiros e as bagagens. Mas, quando a história narra que, em Miranda, tiveram de abater umas 600 muares para não atrapalharem a retirada, que dificuldades haviam de suportar aquelas pobres senhoras.

É a essas aflições que se re­fere a filha do polaco (página 12 do 4.° vol.) ao lembrar-se «das jornadas horrorosas de Miranda do Corvo para Foz de Arouce e para a Guarda».

Em 12 de Março de 1811, Massena, assistiu, da serra da Senhora do Círculo, ao combate da Redinha. Dali, com toda a certeza, desceu pela serra de Janeanes, ao lugar aprazível da Fonte Coberta onde estabeleceu o seu guartel-general. Lá se demorou de 12 para 13.

Massena ordenara que ali mesmo servissem o jantar.

Campos Júnior, para não ser excepção ao anticlericalismo dos nossos romancistas do século passado, sem exceptuar o adorável Júlio Denís, supõe que os acepipes da refeição foram o produto do saque da residência paroquial do Zambujal.

Podia ter posto a hipótese, que me parece mais crível, de ter sido a Condessa da Ega que, ao passar pelos seus domínios, dera aos seus servos a ordem de trazerem meia dúzia ou mais de cabritos, preparados à moda de Condeixa, o sítio do mundo onde se come o cabrito com mais gosto, como acontece em Miranda com a chanfana.

Estavam todos, senhoras e todos, em ambiente de festa... (conta o General barão de Marbot que estava presente, em suas Memórias). «Estávamos «nós muito «tranquilamente à mesa,) debaixo das árvores, à entrada da aldeia, quando subitamente se descobriu um piquete de 50 Hussards ingleses, a uns 100 passos de distância.

Os granadeiros da guarda tomaram logo as armas e rodearam Massena, enquanto todos os ajudantes de campo e os dragões montaram a cavalo e avançaram para o inimigo.»

A fome foi-se embora e aflitivamente, feridos, prisioneiros, bagagens e todos a pé e a cavalo, (não havia estradas e meios de transporte como hoje) viram-se obrigados a cortar em direcção ao Zambujal, Alfafar, subindo a rampa, do lado da Capela da Senhora das Neves, até ao alto do Casal da Azenha, e descer a Chão de Lamas, Lamas, Cervajota, Miranda e Foz de Arouce...

Era uma verdadeira debandada. Aproximava-se a batalha do Casal Novo que muitos mortos causou dum e doutro lado. Por outro lado, do Almoroz e Montalvão, podia observar-se, a olho nu, o avanço de «muitas tropas que já chegavam  às  Cerdeiras.

Percebia-se bem que os aliados pretendiam cortar o passo aos franceses antes de Foz de Arouce ou, pelo menos antes da ponte da Mucela.

Deste modo, os fugitivos, ainda nesse dia 14, tiveram de atravessar o Ceira em Foz de Arouce.

E como escreve Campos Júnior na página 273 do 3.° vol, da «Filha do Polaco»: «O que as muiheres sofreram naquela guerra!»

“Mirante”, Ano 8º, nº 94, 1 jan.1986, f. 1, 5