Lamas

(Invasões francesas)

 

A primeira invasão, comandada por Junol, entrou em Portu­gal pela fronteira de Segura, Idanha, Castelo Branco, Abrantes, Lisboa. Foi em 1807.

A segunda (1808), comandada por Soult, entrou pelo Norte, tomando Chaves em 2-3-1809 em direcção ao Porto, onde se deu o horrível desastre da ponte das barcas.

A terceira (1809), comandada por Massena, entrou por Almeida em 15-3-809, sofrendo o desastre do Bussaco. Os invasores, entre mortos, feridos e prisioneiros, perderam o general Graindorge.

Quando, há anos, visitei o palácio de Versailles, calhou dar com esta frase, gravada numa padiera: «”General Graindorge mort à Buçaco le 27-ÍX-810” = general Graindorge, morto no Buçaco,  em 27-9-810.

É a História a perpetuar mais uma humilhação dos exércitos invasores!

Mas o resto das tropas francesas tornearam o exército angloluso e, dando uma volta, pela Anadia e Mealhada, entraram em Coimbra sem resistência.

O episódio, sucedido em Lamas, nessa altura, que se narrará em breve, ficava incompreensível se não referisse certos factos, descritos per Campos Júnior e outros.

Temos de falar muito resumidamente no tratado de Fontainebleau, na Convenção de Cintra (30-8-808), na saída da Família Real para o Brasil e no tributo de cem milhões de francos ou quarenta milhões de cruzados ouro que Napoleão queria que Portugal pagasse.

Nunca consegui compreender a razão por que chamam fuga covarde à saída da Família Real para o Brasil. Só os liberais, posteriores a 34, lhe dão esse nome de fuga.

São os próprios factos, que a desculpam e até recomendam.

Lá na “Filha do Polaco”: “A Espanha de Godoy atraiçoou o meu país em Fontainebleau”. Já antes se lê: “A Espanha ajudara a perder Portugal nas malhas daquela traiçoeira rede de Fontainebleau”. Refere-se decerto à paz imposta à nossa Pátria já em 1801 em que perdemos Olivença com os territórios circundantes. E na página 461 do 1° volume, lê-se: “Estou a ver que Napoleão, quere engaiolar em Baiona a família real da Espanha...” para não descrever as outras humilhações que sofreram.

É sabido como José Banaparte acabou por ocupar o trono de Espanha.

Os que censuram a saída da Família Real portuguesa para o Brasil, queriam vê-la humilhada como o foi a família espanhola, a de Nápoles e o próprio Papa...

Se censuram o nosso Principal Regente (D. João VI) porque não condenam, do mesmo modo, a saída dos reis da Bélgica e Holanda para Inglaterra, diante da avalanche de Hitler?

E porque louvam De Gaule que também fugiu para Inglaterra e condenaram Pétain que não quis abandonar o território pátrio?

Os que chamam fuga à retirada da Família Real para o Brasil, decerto queriam também que o General que comandava as nossas tropas em Gôa, resistisse, até à morte, ao Colosso que se chama India...

Isto foi possível noutras eras em que dois milhões de portugueses deram leis ao mundo.

Agora, diante das vitórias assombrosas de Napoleão, como continua a ser verdade que “contra a força não há resistência”, toda a prudência é pouca. E, como diz o prolóquio latino “violenta non durant” (as coisas violentas não duram), convém dar tempo ao tempo. Foi assim que Junot entrou em Portugal, sem resistência. E, quando as derrotas de Roliça e Vimeiro o obrigaram a sair de Portugal, (convenção de Cintra em 30-3-808) conduziram-no, sem o humilhar, com as suas tropas, a um porto francês, deixando que levassem tudo o que tinham roubado. É que tinham medo de que Napoleão se zangasse...

Entretanto, havia-se deslocado a Bayone a Comissão que foi pedir ao Imperador a redução do tributo que impusera e que era impossível pagar.

Dessa comissão fazia parte o Bispo de Coimbra D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho.

Bonaparte dera-lhe ordem de seguir com Massena para a sua cidade de Coimbra. Ainda desta vez teve sorte: a primeira, quando ficou Bispo de Coimbra, após a queda do Marquês de Pombal, a segunda quando retoma o governo da sua diocese onde morreu em 16-4-822.

Sem fazer parte dos “degenerados”, como escreve J. Acúrcio das Neves que foram pôr-se ao dispor de Junot, o Imperador mandou escolher como fez noutros países, a Legião Portuguesa, composta de alguns milhares de soldados e oficiais que, depois de ajuramentados, seguiram para Baiona, onde se encontravam quando da rendição de Junot.

O Governo Legítimo de Portugal condenou-os à morte, como traidores.

Também considero isso um exagero. Na verdade, quem vai para a tropa de vontade, sobretudo para servir um povo estranho?

Houve assim situações terríveis naqueles tempos de confusão.

Ora, não foi só o Bispo de Coimbra que foi obrigado a seguir na terceira invasão; também veio parte da Legião Portuguesa com alguns oficiais.

Como acima se disse, Massena ocupara Coimbra onde deixou uma guarnição de 5.000 soldados. No seu desejo de tomar Lisboa que Junot fora obrigado a abandonar, o grosso do seu exército seguiu, via Condeixa. Contudo, sem dúvida uma forte coluna marchou pela estrada Coimbra-Tomar.

Esta passa na freguesia de Lamas no sítio que, mais tarde, se chamou o Muro do índia. Pousafoles, há 170 anos, já era, urna grande terra, até com mais população que hoje.

Contavam os antigos que, ao passarem as tropas invasoras, a Caminho do Sul, um numeroso grupo de raparigas veio admirar a coluna de galuchos, a marchar em forma, e atiravam lhes abadas de laranjas que alguns apanhavam nas pontas das baionetas.

Avançou então para elas um oficial português que as amedrontou, dizendo: “Ó meninas, olhem que isto não é festa; é sinal de guerra.”

Daí a dias, o povo de Pousafoles tinha ajuntado todas as salgadeiras, celeiros, roupas e mais haveres que não pediam levar, nos célebres “entaipes” afim de o inimigo não precisar de arrombar as casas e talvez incendiá-las. Cada um se escondeu pelo Fernandinho e outros sítios, ficando na povoação uma meia dúzia de soldados.

“Mirante”, Ano 8º, nº 92, 1 nov.1985, f. 1, 4

 

 

Lamas

(Invasões francesas)

 

Tenha paciência o benévolo leitor mas, ainda uma vez, se falará das invasões francesas.

Nesse tempo, o bispado de Coimbra tinha 290 paroquias e só 26 não sofreram com as invasões.

Lamas não fez parte destas 26 e até deve ser das que mais sotreu, principalmente na retirada da última invasão.

E curioso notar que, apesar de Vila Seca confinar com a nossa freguesia e até ser passagem obrigatória dos exércitos que vinham do Sul, por Pombal e Redinha, não sofreu nada que se parecesse com o que suportaram os nossos antepassados.

Assim, era Vila Seca, é fama terem derramado na rua os depósitos de azeite e vinho que encontravam. Romperam pelo fundo a caixa das esmolas da igreja para as roubarem; até as âmbulas dos Santos Óleos levaram, como se vê no registo dum baptizado realizado nessa altura, em que o P.e Reis que era do Casal Novo, declara que não ungiu a criança por essa razão.

Ainda hoje, se vê, no alto da torre, um sino com um furo que dizem ter sido feito com um tiro dum soldado francês. Não consta doutros desacatos.

Em Traveira só queimaram o palácio dos fidalgos de lá. Não se sabe doutros prejuízos. Devem ter passado apressadamente.

No .planalto, contudo, entre Traveira e Chão de Lamas, encontra-se um sítio, ainda hoje, conhecido pelo nome de Covão da Dona.

Uma vez, um antigo paroquiano ofereceu-me para comprar, um punhado de moedas de cobre, encontradas ali e decerto perdidas pelos soldados que a tradição narra que acamparam naquele lugar.

Consultei o livro dos óbitos, ocorridos nessa altura. Tem o seu interesse notar que quatro mortos foram sepultados na capela de Traveira, um na de Alcouce, um no pátio do Seminário, um na Capela de Anaguéis (Almalaguês), três em Santa Justa, um na igreja de São Pedro de Coimbra e um Manuel, solteiro, na Sé da mesma cidade.

Em Lamas, porém, os óbitos, quase todos ocorridos na primeira quinzena de Março de l8ll, deram-se em circunstâncias trágicas. Uns vinte e dois, sobretudo mulheres, têm a nota cruel: «morto ou morta pelos franceses».

De dois mortos da Cervajota contam os antigos, que foram encontrados pendentes de uma oliveira, atados a um lençol pelo pescoço.

O assento de óbitos de 14-3-811 diz: «Achou-se neste logar de Pousafoles hum creado de Dona (não consegui decifrar o nome) de Penela morto pelos Franceses.»

É sinal de que passaram por Lamas não só os que vinham dos lados de Condeixa, mas também os que vinham de Podentes e Penela.

A folhas 64 do mesmo livro, vem: «Em dezoito de Janeiro de mil oitosentos e honze morreo em Pousafoles hum soldado morto pelos Franceses e não se sabia donde era, etc.» Perdoem os erros; é assim que lá está.

Deve ter sido este soldado que o meu trisavô, José António, matou, rachando-lhe a cabeça ao meio com uma falheira.

Esse plebeu tinha casado em 13 de Julho de 1809 (não copio o registo para não alongar) com uma fidalga de Avô, chamada Thereza de Jezus. Em 11-5-810 foi baptisado o seu único filho Bazílio. Entretanto tiveram de fugir dos soldados que ocuparam Pousafoles.

Imagine-se quanto sofreria a jovem mãe, habituada a todas as comodidades, e agora com o seu menino escondida no fundo de alguma mina... Devia passar tão mal que acabou por morrer em 1814.

Ora, tendo percebido que o grupo de soldados que estavam de sentinela no lugar, tinham saído para alguma diligência, o meu trisavô foi ao «entaipe» à procura d' alguma comida melhor para a esposa.

Qual não é o seu espanto, ao ver um soldado, muito embriagado, a tentar alvejá-lo com a sua espingarda de pederneira! Matou para que o não matassem. Deve ter sido este o soldado a que se refere o dito registo de óbito.

No tal «entaipe» estava também depositada uma bandeira de Nossa Senhora do Pranto, envolvida numa colcha de Chita que a minha falecida mãe dizia ser uma que ali guardou religiosamente.

De que se haviam de lembrar os soldados? Um dia, organizaram um cortejo, caminhando pelo cume dos telhados de Pousafoles, cantando, atrás da bandeira, «Santa Maria, ora pro nobis!»

Dos esconderijos das matas que estão a «roda da povoação, os foragidos assistiam com riso amarelo...

É mais uma prova de que a devoção à Senhora do Pranto não começou em 1825 ou 1839, data que apresentam os Círios de Dornes, pertencentes respectivamente a Miranda e a Lamas. Esses números apenas indicam os anos em que foram restauradas as romarias dessas freguesias.

Voltando a falar de mortos, devo lembrar que alguns foram sepultados como se fossem cães.

Refiro-me a um soldado (conhecia-se pelos botões) que foi encontrado em Urzelhe, à entrada da antiga «quelha do Celeiro» quando se abriu a maqcdame que segue para os Casais.

Um outro fez-se esperto e foi sózinho até ao Lombo; embriagou-se de tal modo que, ao passar aquela vereda que vai por detrás das Casas, à vista de São Clemente, junto de uma barreira íngreme e alta, tombou desamparadamente por aí abaixo... Lá no fundo, enterraram-no talvez ainda a respirar!

Um terceiro aventurou-se a ir só, para os lados da Murada. Ali ao «Val Salgueíra» encontrou-se com um barbeiro que regressava de Lobazes. Trazia a tiracolo uma cabaça com vinho para refrescar a boca, de vez em quando. O francês exigiu que repartisse com ele o que levava na cabaça. Ao beber sofregamente, com os olhos virados para as nuvens, apenas sentiu a navalha de barba cortar-lhe a carótida... Também não consta do registo de óbitos.

Deste três sei eu mas a quantos terá acontecido!

Para terminar, devo referir-me a umas bolas de ferro que há por toda a freguesia de que os donos se servem como se fossem bigornas.

Eram as granadas dos franceses. Muito longe de se parecerem com as de hoje, visto que não explodiam.

Há dessas bolas de ferro maciço com cinco centímetros de diâmetro; e outras com dez a doze centímetros, às vezes, com o peso de cinco quilogramas.

Fala-se nas batalhas do Casal Novo e na de Foz de Arouce. Nunca (porém, os escritos - antigos se referiram à batalha de Lamas. Como explicar então a existência de tantas dessas granadas?

Lê-se em Belizário Pimenta: «Ney ficou ainda para defender a retirada e; quando foi impossível manter as posições por ter sido atacado, de frente, por Welington e, de flanco, por Picton, quando Monterum com a brilhante cavalaria se lhe reuniu, depois duma marcha aventurosa e apressada pelas freguesias de Almalaguês e Vila Seca, até que veio passar às Cerdeiras...»

Deve ter sido para deter essa avançada que algumas tropas desceram à Cervajota incendiando a capela da Senhora do Desterro e o lugar de Pisão que nunca mais foram restaurados.

Sem dúvida, nestas manobras, os canhões franceses vomitaram  a metralha de que se fala.

Padre Luciano

“Mirante”, Ano 8º, nº 95, 1 fev.1986, f. 1