Lamas

(Fontes da minha terra)

 

Sempre ouvi dizer que não há santinhos mais lindos que os da minha igreja ou capela, nem água melhor que a das nossas fontes.

Está, pois, justificado o assunto a tratar nestas linhas.

Os velhos lembram-se de haver aguadeiros a vender água em Lisboa, em Fátima e nas estações do caminho de ferro. Fiquei honrado por me dizerem uma vez que a água que estava a beber em Albergaria dos Doze, era trazida duma nascente que havia ao Cabo do Túnel que se segue à ponte do Travasso!

Antigamente havia uma certa estima pelas fontes que por vezes eram belos monumentos. Sem falar nas fontes de Roma ou de Coimbra, basta lembrar a Bica do Frade (cuja água D. Carlos I tanto apreciava), a fonte Lume, a fonte da Bica (próximo de Bruscos), a fonte dos Passarinhos, a da Cana e a da Telha, na estrada de Coimbra.

O lugar de Chão de Lamas, além da água canalizada da Lameira para o solar do sr. Morgado, ia à Bica do Frade para beber e para os outros gastos tinha poços.

Pousafoles tinha as fontes da Lapa da Portela, do Soito, a Bica e a fonte da Telha da Cheira.

Lamas tinha a fonte Velha, a fonte Lume, a fonte da Moira e a das Barroquinhas.

Os Casais tinham o Porto Carro, a fonte dos Carvalhos, a Bica e a nascente do alto de São Clemente. Se alguém dissesse que o dono da Casa do falecido Joaquim Lopes era Manuel Ferreira, ninguém sabia de quem se tratava. Não sucede o mesmo se informarem que é o tio Manuel da Bica.

As Cerdeiras iam buscar água às fontes das Pocariças da Lapa ou das Louceiras. A água desta nascente corre naturalmente para o lado de Monforte mas o povo das Cerdeiras encaminha-a para a casa da rigueira.

Urzelhe tem a fonte da Ladeira, ali ao fundo da Lapa dos Cochos, a do Paço e a do Soito. A água do Paço tem um sabor inteiramente diferente das outras: vem contrário das outras duas que vêm de rocha de saibro branco.

A Azenha tinha uma bica no pátio do solar e a Murada ia buscar água para beber ao Jogo da Bola.

Já no nosso tempo, conseguiu-se levar a água a quase todos os domicílios. A electricidade, com a sua força misteriosa, acciona potentes máquinas que vão buscar a água às profundezas dos abismos ou que a elevam às maiores alturas.

Por outro lado, as canalizações modernas muito mais baratas e “práticas que as de ferro ou de barro”, também favoreceram estes melhoramentos.

Os primeiros lugares que experimentaram o benefício da água ao domicílio, foram Lamas, Vale e Chão de Lamas. Explorou-se no vale da Marmeleira, com um sabor pronunciadamente férreo; elevou-se para um depósito, construído no alto do monte, que continua aquele onde houve três fornos de cal e ali se encontrou o ponto donde o precioso líquido desce a quase todas as casas. Em breve, porém, se verificou que o caudal era insuficiente.

Mas logo a Câmara Municipal, sem olhar a despesas, mandou fazer um furo, não longe da primitiva mina. Apareceu uma água, levemente turva, mas abundante e sem ser férrea.

Esta obra começou ainda no tempo do “negregado” Estado Novo por aquele antigo sistema das comparticipações. Um conjunto de boas vontades e esforços a levaram a efeito; mas é justo salientar a pertinácia do Pároco de então — António Freire Diogo. Pelo menos, tenho aqui presente a Licença n.° 592/61 da Junta Autónoma das Estradas, autorizando que se abram na macdame as valas em que se deviam esconder os canos da água. Essa licença é passada ao sr. P.e Diogo.

O abastecimento de água ao lugar de Pousafoles foi já posterior ao 25 de Abril, em 1979. No ponto mais alto da quinta do falecido Fangueiro, um furo que foi buscar a água às entranhas da terra. Não é preciso bombeá-la para o cima dum monte ou para o alto duma torre. Do sítio em que sai do chão, abastece todas as casas sem jamais ter havido reclamações.

Em 1982 fez-se a última grande obra que leva o sangue da terra a todos os Casais, Cerdeiras, Urzelhe, Azenha e até à Murada. Sangraram, à Paula, pelo lado do Nascente, grande quantidade de água calcária para um depósito, feito no alto daquele cabeço, próximo de Cerdeiras, onde trabalharam dois moinhos de vento e onde está um velho marco cuja inscrição não consegui decifrar. Partindo dali, tanto para as Cerdeiras como para o Lombo é sempre a descer...

Nem o abastecimento de Pousafoles nem este último que se vem descrevendo, tiveram uma festa na sua inauguração.

Na altura em que se inaugurou em Urzelhe o esplêndido melhoramento duma ponte de cimento que liga o velho Terreiro da Ponte à estrada que passa à casa do sr. Jerónimo, chegou-se a programar que se festejasse também o novo abastecimento de água. Só uma grande dose de serenidade e compreensão impediram este número do programa.

As Autoridades Concelhias mereciam mais gratidão e confiança pela boa vontade com que têm favorecido a nossa freguesia desde a iluminação pública às obras de abastecimento de água e caminhos.

Mas há-de dizer-se sempre bem do progresso?

Sem as fontes, não teríamos o belo episódio descrito no 1.° livro da Bíblia: foi numa fonte que o enviado de Abraão encontrou a noiva para seu filho Isaac (Génesis, cap. 24).

Foi também numa fonte que se deu o encontro de Jesus com a Samaritana (Joan IV,).

Sem subirmos aos poetas que tanta inspiração encontraram nas fontes, creio que todos nós tínhamos muito que contar de histórias infantis, relacionadas com elas.

Uma vez, nos primeiros tempos da escola primária, fiz uma travessura na fonte Velha de Lamas. Ao chegar à estrada, já toda a gente sabia o que eu fizera. Uma senhora idosa que já morreu, dizia muitas vezes à minha família quando eu já tinha ordem de Missa: “Ai que vergonha sinto pelas chineladas que lhe dei quando ele era pequeno!”

E que é das contareiras das nossas casas onde guardavam cântaros, talhas, asados, barris, moringas de barro, dos mais variados feitios e enfeites, com os respectivos telhadores e púcaros? Parecia que até a água se tornava mais saborosa.

Porque já não são precisas é que a fonte do Porto Carro foi invadida, pelas sanguessugas e outras acabaram por desaparecer como a fonte Lume, da Cana e do Jogo da Bola.

“Mirante”, Ano 8º, nº 83, 1 fev. 1985, f. 1, 3