Lamas

Produção

 

Quase ao cimo do Vale da Pedrinha, há um sitío chamado Eira Velha. Aí, numa grande superfície, em volta, descobrem-se muitos restos de cerâmica — tégulas (telhas), tijolos e até pesos de tear. São lembranças eviden­tes duma indústria florescente de cerâmica que ali existia há mais de mil anos.

Em tempos idos, também se cultivou, na freguesia, muito o linho. Todas as mulheres sabiam fiar (cada roca tem seu fuso) e tinham orgulho em possuir muitos lençóis de linho. Aqui só se vêem mulheres, com enxadas na mão, para sachar ou regar.

Hoje nem. para o altar há toalhas de linho.

A própria semente do linho era usada para fins medicinais. Lembram-se das papas de linhaça?

Aquele nome — Pisão da terra, pisão do lagar — mostra que houve aqui uma indústria incipiente da «preparação das hastes do linho para poder ser fiado e dos seus fios se tecerem panos.

Do mesmo modo, já lá vai o tempo em que, em toda a fre­guesia, se viam muitos castanheiros que produziam muita madeira e muitas castanhas.

Não foram só os incêndios que deram cabo de tudo. Já há mais de cem anos, os castanheiros começaram a ser atacados dum mal que destruiu soutos inteiros.

Como já se disse em 1834, despovoaram-se os conventos. Na capela do Espírito Santo de Vila Seca, uns frades naturais daquela freguesia e um de Cadaixo tentaram instituir um centro de vida religiosa. Atraíram gente de todas as redondezas...

A minha avó materna, ainda jovem, pediu licença aos meus bisavós para lá ir. Levou uma taleiga de retalhos cheia de castanhas e ofereceu-a aos religiosos. Estes ficaram tão agradecidos que lhe deram uma benção especial que eu teimo em crer que dura até hoje na família...

Nesses tempos, não precisáva­mos de comprar varas para a azeitona.

Havia também, no lugar de Lamas, uma indústria cuja matéria prima era a madeira de castanheiros— a dos canastreiros.

Começou com a vinda, do Fraldeu para aqui, do senhor Aires Caetano. Com os seus filhos (conheci 5 rapagões) não havia mãos a medir. Eram poceiras, (ou posseiras? Não acho no dicionário), canastras, cabazes, cestas de alqueire, cestinhas de azeitona, gigas para as raparigas levarem ao mercado, berços para embalar as crianças, cestos maiores para a barreia... eu sei lá a variedade de obras que produziam.

Com a morte do Sr. Mário Caetano acabou na freguesia este artesanato.

Outro produto que a freguesia teve muito, foi o pinheiro. Esta árvore assenhoreou-se das encostas, antes cobertas de castanheiros e olival. Porém, em nossos dias, teve um temível inimigo — o fogo. A madeira, a resina, a lenha eram produtos que todos os anos ajudavam muito o agricultor. O eucalipto que em breve vai conquistar as nossas encostas, só nos dá a sua madeira, aí de dez em dez anos.

Apesar disso, há, entre Lamas e Chão de Lamas, uma progressiva, fábrica de serração, pertencendo ao Sr. Avelino Bento que veio de Podentes.

Antes de falar no milho, azeite e vinho que a freguesia produz com certa abundância, importa não esquecer outras riquezas que existiram eles ainda existem.

Deduz-se do primeiro Foral, concedido a Miranda, que havia, na nossa região, caça grossa. Se não houvesse, não seria preciso regulamentá-la.

Dos lobos falavam-nos os nossos pais e avós. A linha férrea, ruído dos motores e sobretudo os fogos que destruíram os seus esconderijos, obrigaram-nos a retirar das nossas terras.

Antes dos lobos, houve sem dúvida o veado, o javali e o urso. Os nomes de alguns sítios que ainda hoje usamos, não tinham explicação sem a existência destes bichos. Estou a lembrar: «Cervajota», «Almas do Camurço», «Cerdeiras», «Mata da Ursa» ou «Ponte do Vale da Ursa».

Não pensem que me refiro àquela ponte que agora liga Cernache do Bom Jardim à Sertã. Refiro-me àquela que ficou submersa nas águas da barragem de Castelo do Bode.

Atravessei-a há anos largos.

Para demonstrar que nas matas em redor, no princípio deste século, havia ainda caça grossa, vou narrar um caso autêntico.

O rei D. Carlos viera com vários amigos caçar nas redondezas de Dornes que todos conhecemos por causa da Senhora do Pranto.

Os caçadores espalharam-se e tinham combinado reencontrarem-se junto da tal ponte. D. Carlos desorientou-se e teve de pedir a um pastor que lhe ensinasse onde era o sítio do ajuntamento. Entretanto conversavam ambos:

— Ó senhor, disseram-me que o Rei também vinha nesta caçada. Vossemecê mostra-mo?

— Mostro sim. Anda, vamos depressa.

Caminharam, caminharam... até que chegaram ao pé dum grupo de fidalgos, todos de cartola. E todos, com muito respeito, levantaram respeitosamente as cartolas, saudando Sua Majestade e inquirindo se algo de extraordinário havia sucedido...

O pastorzito, muito familiarmente, agarrou-se então a D. Carlos, perguntando curiosamente:

— Ò senhor,   ó   senhor! diga-me agora quem é o Rei?

Dom Carlos, «a sorrir responde:

— Dos dois é um. Ou és tu, ou sou eu. Não és tu?

— !?...

— Então sou eu! Anda; toma lá um libra e muito obrigado.

O rapaz caiu das nuvens; não sabia que o Rei era um homem como outro qualquer.

Nos nossos tempos, ainda se encontram as raposas e os texugos com focinho de porco ou de cão. Se os responsáveis que deviam perder as cabeças (Deus me perdoe), continuarem a destruir as nossas florestas, até estas peças desaparecerem.

As raposas ainda hoje arreliam as donas de casa. Quando têm rapositos, dão-se ao luxo de os tratar a galinha e têm o descaramento de, às vezes, virem de dia à procura de comida para os filhos...

Apesar disso, em Chão de Lamas, a criação dos galináceos faz-se em grande escala no aviário do sr. Fernando Bento. Não fazem falta as que as raposas levam.

Deduz-se, pois, dos nomes antigos, a existência de certas peças de caça. Doutros chamadoiros vê-se que a freguesia produz mais coisas boas.

Quando era pequeno, ouvia chamar a uma propriedade do sr. Lucas Falcão «pomar». Não se via então lá uma só árvore de fruto; mas decerto as viram outros. Hoje aquele mimoso terreno voltou a ser uma floresta de árvores de fruto para justificar o nome antigo.

Sabem o que são pereiros? São umas árvores parecidas com as macieiras; os seus frutos não são redondos como as maças, mas têm um feitio como o das pêras.

Os bichos não entram com esta fruta de modo que se ouve com frequência: «são que nem um pêro» é «rijo como um pêro». Os nomes «cabeço pereiro» e «marco dos pereiros» atestam que houve tempos em que esta árvore era muito apreciada. Realmente os pêros têm um sabor delicioso, mais fino que o açúcar. Em Urzelhe há um sítio que ainda não perdeu o nome de «nogueira!», embora esteja coberto de esplêndidas casas com os seus quintais em volta. Mas, em tempos idos, teve muitas e corpulentas nogueiras. Desde criança ouvi dizer que a imagem de Santa Rita que se venera na nossa Capela, foi esculpida duma arranca de certa nogueira que se erguia ao pé daquela eira que ainda se vi perto da casa do sr. Angelino Sequeira.

Quando vejo, sobre a minha mesa de trabalho, certa cabeça, desenhada por Mons. Augusto Nunes Pereira e assinada com o seu «N. P.» vem-me a suspeita de que o santeiro ambulante que executou a nossa Santa Rita, foi o pai daquele meu ilustre amigo que herdou e cultivou a habilidade do pai.

É que as nogueiras não só dão os frutos saborosos e saudáveis que hão-de ser negociados na feira de São Miguel de Penela, mas também madeira, muito apreciada para mobílias.

Talvez fique bem contar que a ocasião que aproximou a minha família da do nosso caríssimo P.e Fernando Coimbra, (ainda ele não tinha nascido), foi justamente o negócio da madeira de nogueira.

O avô materno deste ilustre sacerdote (Francisco Domingues Patrício) tinha a alcunha de «Lente». E realmente tinha um porte muito distinto. Quando eu era garotito, ele vinha à nossa casa em Urzelhe para comprar madeira de nogueira para fazer tamancos ou tamancas que então se usavam muito. Foi desde essa altura que começámos a tratar-nos com amizade.

Podíamos ainda falar das avelãs, da cortiça, da madeira de carvalho, dos cortiços de abelhas que os herbicidas destruíram. Mas este já vai longo.

“Mirante”, Ano 9º, nº 101, 102, 1 ago./set.1986, f. 3, 1