Lamas

(A bandeira)

 

Desejava contar umas coisas que se deram em Lamas nas invasões francesas de 1807, 1808 e 1809.

Há que tempos me recomendavam, para isso, a leitura de “A Filha do Polaco” de Campos Júnior. Devo ser franco e declarar que não gostei do livro principalmente por o seu autor usar demasiadas vezes, (parece estribilho) as palavras “esbandalhar” e “esbandalhado”. Lembram o “bandalho” que é das coisas mais detestáveis do mundo.

No entretanto, inspirado por este livro, falemos hoje da nossa bandeira, o mais eloquente símbolo da Pátria.

Quando era criança — 4 anitos? —- lembro-me de percorrerem os Casais e Urzelhe, um grupo de uns 40 homens, adeptos ferrenhos da República.

Ao centro ia a bandeira nacional. O animador do grupo era Manuel Ferreira (1) de S. Clemente, mais conhecido pelo nome de “Careca”. De vez em quando paravam e ele gritava: Viva a República! Viva Afonso Costa! Morra Paiva Couceiro! Abaixo os Tatassas! O grupo respondia: Viva, Morra ou Abaixo!

Foi então que aprendi o valor daquele pano que representa a Pátria.......

Se um indivíduo, para significar o seu ódio a certos governantes, cuspisse e espezinhasse a bandeira nacional, com perdão de Deus, só merecia o meu desprezo e repulsa, por insultar a nossa História, os nossos heróis, os nossos santos, os nossos pais, toda esta família a que nos honramos de pertencer.

Um jornal, chamado “Voz da Graça”, dirigido pelo meu confrade Aníbal Henriques Coelho, conta que por ocasião da visita do Presidente de Portugal a Angola, José Eduardo dos Santos mandou distribuir umas dez mil bandeiras de Portugal. Porém, como por milagre, apareceram, nas ruas de Luanda, mais de cem mil. Aquele pedaço de pano significa e lembra muita coisa. Falei acima em Paiva Couceixo. Devem saber alguns dos meus leitores que ele chefiou mais de um movimento revolucionário com o fim de restaurar a Monarquia. Teve vários apoiantes e surgiram então as guerrilhas a que se chamou a “Monarquia de Avô”, a “Monarquia de Bodelhão” e tantas outras.

O Padre Joaquim Martins Pereira, pároco de Unhais-o-Velho (Pampilhosa da Serra), cheio de mocidade, quando da primeira incursão de Paiva Couceiro, concebeu a ideia de movimentar os povos da Beira Baixa, julgando que atrairia as tropas de Castelo Branco, impedindo-as de se ir juntar às de Coimbra para deterem a marcha dos monárquicos. Para isso, arregimentou umas dezenas de serranos, prendeu o regedor e a Junta de Freguesia de Bodelhão (hoje Aldeia de São Francisco), içando a bandeira monárquica na torre da igreja. No meio de entusiástico vivório, foi proclamada a Monarquia do Bodelhão.

Como era de esperar as tropas de Castelo Branco foram tirar as de Coimbra da indecisão e uma força de meia dúzia de praças da G. N. R. bastou para repor a ordem no Bodelhão. Não prenderam ninguém porque todos fugiram...

E a bandeira?

A bandeira veio parar a Lamas, onde foi guardada carinhosamente, vários anos.

Foi assim: Nas minhas andanças pelo mundo, fiz amizade com o P.e Joaquim Martins Pereira. Já tinha disposto dos seus bens de fortuna e aguardava a morte por causa do cancro. Quando me fui despedir dele, há bastante mais de 30 anos (lembro-me como se fosse hoje) travei o seguinte diálogo:

— Sr. P.e Joaquim sei que dispôs dos seus bens e muito bem. Peço me faça herdeiro da  bandeira da Monarquia do Bodelhão; eu saberei honrá-la.

— Ó Ana! (a empregada era natural do Cabril onde eu era pároco) traz a bandeira ao teu prior!

Foi assim que me tornei depositário desta relíquia. Também eu envelheci e dispus dos meus bens... E a bandeira?

Receava que ela viesse a acabar, como um esfregão de cozinha e depois ser queimada com o lixo e os papéis velhos. Desabafei com um amigo que vive no Mogadouro (Nordeste Transmontano) que é (primo próximo do último Morgado de Chão de Lamas.

O Dr. José Bernardo Sárrea de Barros arranjou altar para aquela relíquia num museu, há pouco organizado em Bragança! Num futuro “Album dos Vencidos” em que se historie a Monarquia do Bodelhão, tem de se falar de Lamas por causa da tal bandeira.

Também Campos Júnior em todos os quatro volumes de ”A Filha do Polaco” mostra um verdadeiro culto pela bandeira de Portugal.

A Filha do Polaco é a heroína máxima do romance. O seu namorado é um fidalgo português a quem ela ofereceu uma bandeira de Portugal, bordada a ouro. O fidalgo queria mais à bandeira que à futura esposa. “Santa Bandeira! Alguém te saúda!”

Junot “mandara arriar esta bandeira no Castelo de S. Jorge” e substituí-la pela de França.

Foi o princípio da sua desgraça. Que desgostos e revoltas! “O eclipse da sua (de Junot) estrela feito pela bandeira odiada de Abukir e Trafalgar e pela outra que ele mandara arriar das velhas muralhas do Castelo de São Jorge» (página 160 do 3.° vol.). . Num lance difícil da batalha de Vagram (Áustria) o namorado da “Filha do Polaco” vê as tropas a recuar. Com os soldados portugueses do seu comando iça na ponta duma lança a bandeira de Portugal, levando o inimigo de vencida... Talvez fosse este gesto que fez com que Napoleão ficou com a fama desta vitória. Mas nunca perdoou ao Capitão Castro ter içado a bandeira de Portugal em lugar da francesa.

“A causa próxima da exclusão foi aquela bandeira de Portugal”.( pág. 360 do 3.° vol.).

Na 3ª invasão, na batalha do Buçaco e na passagem em retirada, por Lamas, das tropas de Massena, a bandeira lá ia, mas escondida no peito do oficial que fez todo o possível pela derrota das tropas francesas em Portugal.

Foi outra vez içada na Campanha da Rússia em que Napoleão sofreu o seu maior desaire, à ida levava 400 mil homens e na fuga, nem 20.000 o acompanhavam.

Após o exílio na ilha de Elba, ainda estrecuchou um pouco, mas a derrota de Waterloo atirou com ele para a ilha de Santa Helena onde morreu ingloriamente.

(1)    Nasceu em 1865

“Mirante”, Ano 8º, nº 91, 1 out..1985, f. 1, 4